terça-feira, 1 de setembro de 2015

Um caso de letargia

Em um livro de memórias que nossos dirigentes espirituais nos aconselharam escrever, existem as seguintes páginas, que dali extraimos para o presente volume, oferecendo-as à meditação do leitor, pois jamais devemos desprezar fatos autênticos que atestem a verdade espírita. Escrevemo-las num grande desabafo, pois tantos foram os fatos espíritas que desde a infância rodearam a nossa vida, que, em verdade, nossa consciência se acusaria se os retivéssemos somente para deleite das nossas recordações. Eis as aludidas páginas: — «Creio que nasci médium já desenvolvido, pois jamais me dei ao trabalho de procurar desenvolver faculdades medianímicas. Algumas faculdades se apresentaram ainda em minha primeira infância: a vidência, a audição e o próprio desdobramento em corpo astral, com o curioso fenômeno da morte aparente. Creio mesmo, e o leitor ajuizará, que o primeiro grande fenômeno mediúnico ocorrido comigo se verificou quando eu estava apenas vinte e nove dias de existência. Tendo vindo ao mundo na noite de Natal, 24 de Dezembro, a 23 de Janeiro, durante um súbito acesso de tosse, em que sobreveio sufocação, fiquei como morta. Tudo indica que, em existência pretérita, eu morrera afogada por suicídio, e aquela sufocação, no primeiro mês do meu nascimento, nada mais seria que um dos muitos complexos que acompanham o Espírito do suicida, mesmo quando reencarnado, reminiscências mentais e vibratórias que o traumatizam por períodos longos, comumente. Durante seis horas consecutivas permaneci com rigidez cadavérica, o corpo arroxeado, a fisionomia abatida e macilenta do cadáver, os olhos aprofundados, o nariz afilado, a boca cerrada e o queixo endurecido, enregelada, sem respiração e sem pulso. O único médico da localidade — pequena cidade do Sul do Estado do Rio de Janeiro, hoje denominada Rio das Flores, mas então chamada Santa Teresa de Valença —, o único médico e o farmacêutico, examinando-me, constataram a morte súbita por sufocação, à falta de outra «causa mortis» mais lógica. A certidão de óbito foi, portanto, legalmente passada. Minha avó e minhas tias trataram de me amortalhar para o sepultamento, à tarde, pois o «óbito» ocorrera pela manhã, bem cedo. Eu era recém-chegada na família e, por isso, ao que parece, «minha morte» não abalava o sentimento de ninguém, pois, havendo ao todo vinte e oito pessoas na residência rural de minha avó materna, onde nasci, porqüanto a família se havia reunido para as comemorações do Natal e do Ano-Novo, ninguém demonstrava pesar pelo acontecimento, muito ao contrário do que se passara na residência do fariseu Jairo, há quase dois mil anos... Vestiram-me então de branco e azul, como o «Menino Jesus», com rendinhas prateadas na túnica de cetim, faixas e estrelinhas, e me engrinaldaram a fronte com uma coroa de rosinhas brancas. Chovia torrencialmente e esfriara o tempo, numa localidade própria para o veraneio, como é a minha cidade natal. A eça mortuária, uma mesinha com toalhas rendadas, com as velas e o crucifixo tradicional, encontrava-se à minha espera, solenemente preparada na sala de visitas. Nem minha mãe chorava. Mas esta não chorava porque não acreditava na minha morte. Opunha-se terminantemente que me expusessem na sala e encomendassem o caixão mortuário. A fim de não excitá-la, deixaram-me no berço mesmo, mas encomendaram o caixãozinho, todo branco, bordado de estrelinhas e franjas douradas... Minha mãe, então, quando havia já seis horas que eu me encontrava naquele estado insólito, conservando-se ainda católica romana, por aquele tempo, e vendo que se aproximava a hora do enterro, retirou-se para um aposento solitário da casa, fechou-se nele, acompanhou-se de um quadro com estampa representando Maria, Mãe de Jesus, e, com uma vela acesa, prostrou-se de joelhos ali, sôzinha, e fêz a invocação seguinte, concentrando-se em preces durante uma hora: — «Maria Santíssima, Santa Mãe de Jesus e nossa Mãe, vós, que também fostes mãe e passastes pelas aflições de ver padecer e morrer o vosso Filho sob os pecados dos homens, ouvi o apelo da minha angústia e atendei-o, Senhora, pelo amor do vosso Filho: Se minha filha estiver realmente morta, podereis levá-la de retorno a Deus, porque eu me resignarei à inevitável lei da morte. Mas se, como creio, ela estiver viva, apenas sofrendo um distúrbio cuja causa ignoramos, rogo a vossa intervenção junto a Deus Pai para que ela torne a si, a fim de que não seja sepultada viva. E como prova do meu reconhecimento por essa caridade que me fareis eu vo-la entregarei para sempre. Renunciarei aos meus direitos sobre ela a partir deste momento! Ela é vossa! Eu vo-la entrego! E seja qual for o destino que a esperar, uma vez retorne à vida, estarei serena e confiante, porque será previsto pela vossa proteção. Muitas vezes, durante a minha infância, minha mãe narrava-me esse episódio da nossa vida por entre sorrisos de satisfação, repetindo cem vezes a prece que aí fica, por ela inventada no momento, acrescentando-a do PaiNosso e da Ave-Maria, e, igualmente entre sorrisos, era que eu a ouvia dizer, tornando-me então muito eufórica por isso mesmo: — Eu nada mais tenho com você... Você pertence a Maria, Mãe de Jesus... Entrementes, ao se retirar do aposento, onde se dera a comunhão com o Alto, minha mãe abeirou-se do meu insignificante fardo carnal, que continuava imerso em catalepsia, e tocou-o carinhosamente com as mãos, repetidas vezes, como se transmitisse energias novas através de um passe. Então, um grito estridente, como de susto, de angústia, acompanhado de choro inconsolável de criança, surpreendeu as pessoas presentes. Minha mãe, provável veículo dos favores caritativos de Maria de Nazaré, levantou-me do berço e despiu-me a mortalha, verificando que a grinalda de rosinhas me ferira a cabeça. As velas que deveriam alumiar o meu cadáver foram retiradas e apagadas, a eça foi destituída das solenes toalhas rendadas, o crucifixo retornou ao oratório de minha avó e a casa funerária recebera de volta um caixão de «anjinho», porque eu revivera para os testemunhos que, de direito, fôssem por mim provados, como espírito revel que fora no passado... e revivera sob o doce influxo maternal de Maria, Mãe de Jesus. Recordando, agora, nestas páginas, esse patético episódio de minha presente existência, a mim narrado tantas vezes pelos meus familiares, nele prefiro compreender também um símbolo, a par do fenômeno psíquico: ingressando na vida terrena para uma encarnação expiatória, eu deveria, com efeito, morrer para mim mesma, renunciando ao mundo e às suas atrações, para ressuscitar o meu espírito, morto no pecado, através do respeito às leis de Deus e do cumprimento do dever, outrora vilipendiado pelo meu livre arbítrio. Não obstante, que seria o fato acima exposto se não a faculdade que comigo viera de outras etapas antigas, o próprio fenômeno mediúnico que ocorre ainda hoje, quando, às vezes, espontaneamente, advêm transes idênticos ao acima narrado, enquanto, em espírito, eu me vejo acompanhando os Instrutores Espirituais para com eles socorrer sofredores da Terra e do Espaço, ou assistir, sob seus influxos vibratórios mentais, aos dramas do mundo invisível, que mais tarde são descritos em romances ou historietas? Aos quatro anos de idade já eu me comunicava com Espíritos desencarnados, através da visão e da audição: via-os e falava com eles. Eu os supunha seres humanos, uma vez que os percebia com essa aparência e me pareciam todos muito concretos, trajados como quaisquer homens e mulheres. Ao meu entender de então, eram pessoas da família, e por isso, talvez, jamais me surpreendi com a presença deles. Uma dessas personagens era-me particularmente afeiçoada: eu a reconhecia como pai e a proclamava como tal a todos os de casa, com naturalidade, julgando-a realmente meu pai e amando-a profundamente. Mais tarde, esse Espírito tornou-se meu assistente ostensivo, auxiliando-me poderosamente a vitória nas provações e tornando-se orientador dos trabalhos por mim realizados como espírita e médium. Tratava-se do Espírito Charlies, já conhecido do leitor através de duas obras por ele ditadas à minha psicografia: Amor e Ódio e Nas Voragens do Pecado.__________________________________________________RECORDAÇÕES DA MEDIUNIDADE YVONNE DO AMARAL PEREIRA DITADO PELO ESPÍRITO ADOLFO BEZERRA DE MENEZES