segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Memórias de um suicida - Capítulo VII

Últimos traços________________ Faz precisamente cinqüenta e dois anos que habito o mundo astral. Tendo-o atingido através da violência de um suicídio, ainda hoje não logrei alcançar a felicidade, bem como a paz íntima que é o beneplácito imortal dos justos e obedientes à Lei. Durante tão longo tempo tenho voluntariamente adiado o sagrado dever de renascer no plano físico-material envolvido na armadura de um novo corpo, o que já agora me vem amargurando sobremodo os dias, não obstante tê-lo feito desejoso de sorver ainda, junto dos nobres instrutores, o elemento educativo capaz de, uma vez mergulhado na carne, proteger-me bastante, o suficiente para me tornar vitorioso nas grandes lutas que enfrentarei rumo à reabilitação moral-espiritual. Muito aprendi durante este meio século em que permaneci internado nesta Colônia Correcional que me abrigou nos dias em que eram mais ardentes as lágrimas que minhalma chorava, mais dolorosos os estiletes que me feriam o coração vacilante, mais atrozes e desanimadoras as decepções que surpreenderam o meu Espírito, muros a dentro do túmulo cavado pelo ato insano do suicídio! Mas, se algo aprendi do que ignorava e me era necessário para a reabilitação, também muito sofri e chorei, debruçado sobre a perspectiva das responsabilidades dos atos por mim praticados! Mesmo desfrutando o convívio confortativo de tantos amigos devotados, tantos mentores zelosos do progresso de seus pupilos, derramei pranto pungentíssimo, enquanto, muitas vezes, o desânimo, essa hidra avassaladora e maldita, tentava deter-me os passos nas vias do programa que me tracei. Aprendi, porém, a respeitar a idéia de Deus, o que já era uma força vigorosa a me escudar, auxiliando-me no combate a mim mesmo. Aprendi a orar, confabulando com o Mestre Amado nas asas luminosas e consoladoras da prece lídima e proveitosa! Muito trabalhei, esforçando-me diariamente, durante quarenta anos, ao contacto de lições sublimes de mestres virtuosos e sábios, a fim de que, das profundezas ignotas do meu ser, a imagem linda da Humildade surgisse para combater a figura perniciosa e malfazeja do Orgulho que durante tantos séculos me vem conservando entre as urzes do mal, soçobrado nos baixios da animalidade! Ao influxo caridoso dos legionários de Maria também comecei a soletrar as primeiras letras do divino alfabeto do Amor, e com eles colaborei nos serviços de auxílio e assistência ao próximo, desenvolvendo-me em labores de dedicação àqueles que sofrem, como jamais me julgara capaz! Lutei pelo bem, guiado por essas nobres entidades, estendi atividades tanto nos parques de trabalhos espirituais acessíveis à minha humílima capacidade como levando-as ao plano material, onde me foi permitido contribuir para que em vários corações maternos a tranqüilidade voltasse a luzir, em muitos rostinhos infantis, lindos e graciosos, o sorriso despontasse novamente, depois de dias e noites de insofrida expectativa, durante os quais a febre ou a tosse e a bronquite os haviam esmaecido, e até no coração dos moços, desesperançados ante a realidade adversa, pude colocar a lâmpada bendita da Esperança que hoje norteia meus passos, desviando-os da rota perigosa e traiçoeira do desânimo, que os teria impelido a abismos idênticos aos por mim conhecidos! Durante quarenta anos trabalhei, pois, denodadamente, ao lado de meus bem-amados Guardiães! Não servi tão só ao Bem, experimentando atitudes fraternas, mas também ao Belo, aprendendo com insignes artistas e "virtuoses" a homenagear a Verdade e respeitar a Lei, dando à Arte o que de melhor e mais digno foi possível extrair das profundezas sinceras de minhalma. Não obstante, jamais me senti satisfeito e tranqüilo comigo mesmo. Existe um vácuo em meu ser que não será preenchido senão depois da renovação em corpo carnal, depois de plenamente testemunhado a mim mesmo o dever que não foi perfeitamente cumprido na última romagem terrena, abreviada pelo suicídio! A recordação dolorosa daquele Jacinto de Ornelas y Ruiz, por mim desgraçado com a cegueira irremediável, num gesto de despeito e ciúme, permanece indelével, impondo-se às cordas sensíveis do meu ser como estigma trágico do Remorso inconsolável, requisitando de meu destino futuro penalidade idêntica, ou seja - a cegueira, já que aprova máxima de ser cego fora por mim anulada à frente do primeiro ensejo ofertado pela Providência, mediante o suicídio com que julgara poder libertar-me dela, ficando, portanto, com esse débito na consciência! ...continua__________________________________________________________________________________Memórias de um suicida (obra mediúnica) de Yvonne do Amaral Pereira

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