quarta-feira, 18 de abril de 2012

Léon Denis na Intimidade



Um traço na obra de Léon Denis é certa estranha e maravilhosa faculdade de ubiquidade. Muitas vezes ele pode estar em si mesmo e naqueles para quem escreve. É quando mais ilumina e mais aquece os corações. Mas existem, também, outros momentos de igual faculdade em que sua identificação com a obra de Kardec é tão perfeita, que já não sabemos mais quem estamos lendo, se um, se outro. Então ele se dirige, sincero e contrito, para Allan Kardec e exclama: “Meu mestre!”

Léon Denis era quase um adolescente quando a doutrina espírita arrebatou para sempre os caudais de sua alma vigorosa.

“Eu tinha 18 anos quando, por volta de 1864, passando um dia pela principal rua da cidade, vi, no mostruário de uma livraria, O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec. Avidamente o comprei, às ocultas de minha mãe, muito cuidadosa quanto aos assuntos de minhas leituras.”

Mlle. Baumard irá comentar que “o rapaz entusiasta deveria discutir, raciocinar sobre a filosofia kardecista na presença de seus pais que, um após outro, aceitaram essas novas ideias...”

É relevante verificar que as derradeiras linhas ditadas por ele a Mlle. Baumard tenham sido para o prefácio à Biografia de Allan Kardec, escrita por Henri Sausse. Essas páginas derradeiras – apenas cinco! – são ricas de revelações, de melancólicas rememorações, um breve espaço para um demorado adeus. Denis lembra o remoto dia em que fizera aquela furtiva compra e diz com a surpreendente convicção de quem, defrontando o fim, não se arrependeu:
“Eu tinha 18 anos quando li O Livro dos Espíritos e isso foi, para mim, uma súbita iluminação de todo o meu ser. Eu não exigi provas a uma doutrina que respondia a todas as questões, resolvia todos os problemas de maneira a satisfazer a razão e a consciência.”

Não nos é difícil imaginar no austero dormitório do nº 19, Place des Arts, o silêncio riscado pela pena de Mlle. Baumard sobre o papel e a voz do jovem de 81 anos, que dita pela derradeira vez:

“Eu encontrei várias vezes Allan Kardec sobre o plano terrestre. A primeira vez foi em Tours, quando ele veio, ao curso de uma viagem de conferências. Tínhamos alugado uma sala para o receber, mas a polícia imperial, desconfiada, interditou-nos o seu uso. Foi preciso que nos reuníssemos no jardim de um amigo, à luz das estrelas. Éramos bem trezentas pessoas de pé, apertadas, pisando as platibandas, mas felizes por ver e ouvir o mestre, assentado em meio a nós, ante uma mesinha e que nos falava do fenômeno das obsessões.
No dia seguinte, quando fui levar-lhe os meus cumprimentos, encontrei-o nesse mesmo jardim, trepado num escabelo, colhendo cerejas para a Sra. Allan Kardec. Esta cena bucólica cheia de encanto contrastava com a gravidade dos personagens. Mais tarde encontrei-o em Bonneval, Eure-et-Loire, onde fora participar de um meeting [i] espírita que reunia todos os adeptos da região. Finalmente em Paris, ao curso de minhas viagens, pude trocar ideias com ele sobre a causa que nos era tão cara.”
Aqui cabe um pequeno parêntese para uma conotação de interesse histórico. Há apenas três pinturas feitas ao vivo, na vida inteira de Allan Kardec, três clarões iluminando a intimidade do grande renovador, antes que sua biografia se confunda definitivamente no contexto de sua obra: duas cartas de Müller, a datada de 31 de março de 1869, em que registra a visão melancólica do Codificador morto na pequena sala da Passage Sainte-Anne; a outra, de 4 de abril de 1869, em que descreve o cortejo fúnebre ao longo dos bulevares parisienses; o terceiro é esse cartão postal escrito 60 anos depois, fixando o idílio outonal sob a cerejeira.

Não muitas linhas além, encontram-se as observações que motivaram, passados mais 50 anos, os nossos comentários atuais. Inaugurando a obra biográfica de Sausse, Denis volta-se sobre si mesmo e vislumbra meio século de trabalho pela palavra e a pena, na difusão do Espiritismo, bem como o motivo de sua incondicional rendição a esse programa e exclama:
“Ademais, as provas estavam em mim mesmo! Eram como vozes longínquas a me falarem de vidas quase de todo apagadas, a evocação de um passado esquecido. Todo um mundo de lembranças se despertava em mim, com seu cortejo de males, de sangue e de lágrimas.”

Na Revue Spirite de janeiro de 1923, sob o título de “L’Spiritisme: la Theorie et les Facts”, o filósofo faz as seguintes revelações:
“Dos espíritos que me protegem, eu tenho um privilégio terrível, que não desejaria a ninguém, pois pode tornar-se causa de sofrimentos morais, uma amarga fonte de lamentações: trata-se do conhecimento de vidas anteriores. A esse respeito eu recomendo a maior circunspecção dos pesquisadores, pois certos espíritos comprazem-se em abusar do nosso desejo de sondar o misterioso passado. A melhor maneira de controlar é encontrar, em si mesmo, os traços desse passado. Importa verificar se os elementos de nossa personalidade moral – aptidão, gostos, tendências, opiniões, generalidades e defeitos – são concordantes com as indicações recebidas, com as funções ocupadas, trabalhos realizados, acontecimentos sofridos. Ora, no que me concerne, essas concordâncias existem. Por exemplo:
Várias vezes, do Além, e com detalhes dois tipos de homem dominam a série já longa de existências minhas: o monge e o soldado, assim como outras personagens mais antigas. Suas vagas silhuetas estão a meio submersas na sombra dos séculos e, entretanto, seus atos sobrevivem, suas repercussões fazem-se sentir até minha vida atual, sob a forma das enfermidades que sempre pesam e que acabrunham a minha velhice. Aí estão, sobretudo, – dizem –, o resultado dos excessos cometidos no passado longínquo, ao curso das guerras de invasão.
No que toca a esse passado, a dúvida não é possível. Em minha vida atual fui isentado de todo serviço militar, em face a fraqueza de minha vista. Entretanto, em 1870, sentindo que poderia prestar um serviço qualquer, alistei-me como voluntário. Em quinze dias aprendi o manejo das armas e completei o curso da escola de pelotões, de maneira a servir de instrutor nos quadros do meu batalhão.
No espaço de seis meses tornei-me, sucessivamente, sub-oficial, sub-tenente, lugar-tenente e estaria ainda progredindo em graus, se a paz não se tivesse feito. Ora, meu pai não foi soldado e nada na vida presente havia me preparado para a função de armas.
O beneditino, e talvez também o religioso de São Bernardo, se encontram em mim.
Reúno todos esses ensinamentos idênticos que me foram dados a esse respeito por diferentes médiuns, distanciados milhas uns dos outros, porém, insisto sobre a necessidade de manter uma grande prudência nessas matérias. Todavia, posso constatar no encadeamento de minhas vidas terrenas, o efeito dessa grande lei de justiça e de evolução que rege todo o destino humano.

“Há uma misteriosa ligação entre o discípulo e o mestre? Reparemos em que meu nome está incrustado no de Allan Kardec que, na realidade, se chamava: Hippolyte Léon Denisard Rivail.”
... Vidas quase de todo apagadas... Um passado quase esquecido... Uma misteriosa ligação...

Eruditos e estudiosos que tiveram acesso aos documentos particulares da Sociedade Espírita de Pais afirmam que os espíritos teriam revelado a Allan Kardec, aquém de sua encarnação como druida, sua vida na Boêmia, sob a personalidade de Jan Huss. Nesse caso encontramos uma valiosa pista para a compreensão dessas “vidas quase de todo apagadas e dessa misteriosa ligação” através de Jerônimo de Praga, guia espiritual de Léon Denis e que foi, igualmente, o maior amigo e o mais eminente discípulo de Jan Huss. Principalmente no crepúsculo da vida do escritor, quando Denis preparava seu derradeiro livro, O Gênio Céltico e o Mundo Invisível, e se preparava, ao mesmo tempo, para abandonar o cenário de suas lutas terrenas, Jerônimo e Kardec parecem volitar incessantemente em torno do octogenário alquebrado e cego, de tal sorte que a última mensagem espiritual recebida por Denis se torna em um verdadeiro anúncio e, ao mesmo tempo, numa consagração. Parte de Kardec e diz:

“... Correspondestes às expectativas ocultas da vontade divina e no reino da luz respirais...”

Não o futuro do verbo, mas o presente. E Léon Denis compreendeu essa sutil intenção. Eis a observação de Mlle. Baumard:
“O mestre tinha o costume de ouvir a leitura das comunicações recebidas no dia posterior ao das sessões. Dessa vez não procedeu assim e foi só depois de seu decesso que essa mensagem assumiu, diante de nós, seus discípulos, sua verdadeira significação...”
A irrupção de Jerônimo de Praga na vida de Léon Denis deu-se no dia de Finados, 2 de novembro de 1882. O escritor, então com 36 anos, encontrava-se em um arrabalde, Mans, reunido a um grupo de operários espíritas. Em sua obra O Mundo Invisível e a Guerra, encontramos essa narrativa:
“De certo nenhum dos outros assistentes conhecia a história do apóstolo tcheco. Eu bem sabia que o discípulo de Jan Huss fora queimado vivo, como o seu mestre, no século XV, por ordem do Concílio de Constança, mas não pensava em nada disso naquele momento. Em pensamento posso ainda ver a humilde estância em que fazíamos a sessão, em número de dez pessoas, em volta de uma mesa de quatro pés. Apenas dois obreiros mecânicos e uma mulher nela apoiavam as mãos rudes e escuras. E eis que o móvel ditou por movimentos solenes e ritmados:
“Deus é bom! Que sobre vós se espalhe a sua bênção, como o benéfico orvalho, pois as consolações celestes não se distribuem senão aos que procuram a justiça. Lutei na arena terrestre, mas desigual era a luta. Sucumbi, porém das minhas cinzas surgiram defensores animosos; marcharam pela estrada que eu pratiquei. São todos meus filhos muito amados.

Jerônimo de Praga”

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