terça-feira, 19 de janeiro de 2016
O martírio dos suicidas
Entrevista de Yvonne Pereira
Há 80 anos, 1926, um livro começava a ser escrito. Sem precedentes na literatura mediúnica, ele trazia as descrições de um homem e suas vidas, existências que culminaram com uma das piores tragédias que um espírito pode se imputar: o suicídio. Era a trajetória, o martírio, a esperança de recuperação, e a certeza de que para evoluir bastava tentar... O autor era um mundialmente famoso escritor português, Camilo Castelo Branco, que havia se suicidado em 1890, aos 65 anos, por não suportar a cegueira que o acometia e que impedia de dedicar-se às letras, atividade que tanto amava. Como Espírito, escolheu a médium Yvonne Pereira para ditar seu infortúnio e essa opção não foi aleatória, Yvonne era única não só pelas impressionantes faculdades mediúnicas que possuía, mas também por ter sido contemporânea de Camilo em sua existência anterior, em Portugal, e por ter também se suicidado naquela vida. Essa condição foi fundamental para que Yvonne conseguisse repassar aos leitores exatamente o que Camilo desejava. O livro ganhou o nome de Memórias de um Suicida e é considerado o mais importante sobre o assunto, tanto pelas informações que contém quanto pela contribuição em ter livrado muitas pessoas desse ato desesperado. Memórias também foi responsável por trazer ao Brasil o trabalho executado pelo Centro de Valorização da Vida – CVV. Foi a partir da leitura do livro que, em 1962, criaram a instituição que tem finalidade única de prevenir o suicídio.
Comemorando então a importância de Memórias de um Suicida, a Maiêutica deste mês é uma compilação de duas entrevistas inéditas que Yvonne concedeu em 1979 a Mauro e Elisabeth Operti e a Altivo Carismi Pamphiro e que serão publicadas na íntegra no livro Pelos Caminhos da Mediunidade Serena, lançamento das Publicações Lachartre. O livro, organizado pelo biógrafo de Yvonne, Pedro Camilo, vai trazer uma coletânea de entrevistas nas quais a médium discorre sobre suas impressionantes faculdades, seus livros, os Espíritos com os quais conviveu, entre outras curiosidades. Pude lê-lo em primeira mão; uma preciosidade! E garante que as perguntas escolhidas para compor esta matéria são parcelas minúsculas das entrevistas inéditas; de certa forma isso muito me entristece, pois conferi a maravilha do todo. Consola-me, porém, o fato de que muitos irão procurar os livros de Yvonne justamente por vislumbrar seus conhecimentos nestas páginas...
Como conheceu o Espírito Camilo Castelo Branco, autor do livro?
Quando tinha 12 anos vi o Espírito Camilo numa festa de aniversário de uma coleguinha, na cidade de Brasópolis, sul de Minas. Convidada para aquela festinha, fui e vi o Camilo muito triste, encostado numa mesa, com a mão no rosto; mas eu não sabia quem ele era. Mais tarde, observando um romance que uma tia lia, vi o retrato do Camilo e o reconheci. Havia afinidade entre nós. Camilo viveu em Portugal na época de meu suicídio em Lisboa (numa vida anterior a esta). Daí eu supor que o meu pai daquela vida e o Camilo foram contemporâneos, e naturalmente eu também. E como meu pai da vida passada era um intelectual calculo que eles se conheciam. Além disso, ainda havia com o Camilo a afinidade pelo suicídio.
Como se deu o início da produção de Memórias de um Suicida?
Em 1926 assisti a uma sessão na fazenda do presidente do Centro Espírita de Lavras e vi o Camilo, que me deu sua primeira mensagem convidando-me para fazer um livro com ele – os bons Espíritos não impõem, eles convidam o médium. O Camilo começou, então, a me dar as primeiras mensagens no Centro Espírita de lavras. Mais tarde, reconheci que Memórias de um Suicida ficou muito incompleto; eram só as narrativas do Camilo. Tanto que a crítica hoje diz que, nesse livro, há 30% de Camilo e 70% de Leon Denis. De fato é isso mesmo. O livro estava incompleto; não havia explicações doutrinárias, conclusões filosóficas... O Camilo não conhecia a Doutrina Espírita para dizer tudo isso. Ele narrou o que se passou com ele. Esse livro ficou guardado por muito tempo... Comigo, como manuscrito, foram 25 anos, e só o entreguei no fim de 1954.
Por quê?
Bem, eu não o aceitei. Achava que era mistificação – eu não conhecia bem a Doutrina quando comecei a recebê-lo. Nem mesmo O Livro dos Médiuns eu havia estudado – e ele é a base dessa instrução toda sobre a vida no além-túmulo, inclusive da existência de casas, de hospitais etc. Acontece que esse noticiário todo não é novo, porque aquele grande médico sueco, Swedenborg, foi o primeiro que andou falando essas coisas, e com muito detalhe e beleza. Depois disso, as mensagens examinadas pelo Ernesto Bozzano falam também de relatos da vida de além-túmulo que foram recebidos antes da Codificação. Então, só depois que conheci tudo isso é que fiquei descansada. Acredito, porém, que muita coisa na obra é analogia, porque nós não temos palavras para descrever o que há no além-túmulo. Seria preciso que criássemos muitos termos, apreendêssemos mais alguma coisa para poder repetir, traduzir, tudo, tudo quanto os Espíritos querem falar.
Então como fez para escrever o que não pretendia?
O que me valeu, não só nesse livro como nos outros, é que vejo tudo quanto os Espíritos dizem. Vejo coisas que não conheço, muitos aparelhos que eu não acreditava que existissem! Via muitos aparelhos, inclusive para regressão de memória – parece uma cinta de ferro na cabeça! Eu não ficava muito em mim, porque do alto eu via meu corpo lá em baixo, escrevendo o livro. Quando acordava, estava com a cabeça toda dolorida, mas, com uma prece, aquilo tudo desaparecia e eu me sentia bem.
Seria como se você visse antes de escrever, para poder escrever melhor?
Por exemplo: quando escrevi sobre aquele poço, onde ficavam muitos suicidas, eu mesma não sabia o que era aquilo, se era criação mental dos Espíritos-guias ou daquelas mentes alucinadas. No mundo não há expressão para traduzir o sofrimento de um suicida. Olha que eu sofro isso desde pequena... Eu passava as noites inteiras com aquela aflição remanescente do suicídio. Era uma angústia indescritível! Eu senti essa angústia durante grande parte da minha vida e ela só começou a desaparecer depois da publicação do livro. Mas eu sofria muito quando eles me mostravam aquelas cenas todas. Posso descrever até o cheiro do enxofre e daquelas matérias do vulcão. Eu via aquilo escorrer... Via as paredes duras e delas descendo aqueles metais fétidos... Conversando com Chico, ele me disse que aquilo era um vulcão extinto.
Você via isso no momento em que estava escrevendo?
Não, eu vi antes. Desde pequena eu via essas cenas. Também fui suicida e sofri muitíssimo no além.
Então foi uma espécie de recordação?
Sim. Creio que aquela cinta que puseram na minha cabeça era para regressão de memória. Meu espírito foi salvo pelo Charles, mas ele não podia ir lá me retirar daquele antro. Ele serviu-se da linha da umbanda. É por isso que eu respeito a umbanda. Eu vi. Puseram uma corda por onde desciam os Espíritos de umbanda. Quando escrevi o romance, eles me puseram a tal cinta que creio, foi para provocar a regressão de memória. Aquilo doía muito. Então, havia uma cratera da qual fui retirada pelos Espíritos de umbanda através de uma corda. Eu respeito a umbanda por causa disso. Há muita coisa que não está certa na umbanda, não resta a menor dúvida; há muitas mistificações... Mas os Espíritos adiantados se servem desses Espíritos para fazer o bem. Quantas vezes eu fui com o Dr. Bezerra fazer esses trabalhos, na Terra mesmo, ou no astral inferior...
Você sentia tudo?
Minha mediunidade toda é desse tipo positivo, que sofre tudo. Se era afogado ou enforcado, eu chegava a ficar com o pescoço roxo, a carótida crescia, a língua vinha para fora, os olhos arregalavam... Era uma coisa horrorosa! Eu não via como ficava; os companheiros de trabalho me contavam depois. A conseqüência do suicídio por queda de altura é, também, horrorosa, porque ele nunca chega embaixo. Já escrevi isso num livro meu. Ele fica se despenhando toda vida, sentindo que vai morrer e a queda não termina nunca, Léon Denis, que é um dos mais importantes continuadores da obra de Kardec, fala que essa tortura costuma vir com a reencarnação, pois o perispírito traz essas impressões, podendo dar origem a doenças nervosas que a medicina não cura. A única coisa que suaviza, que começa a curar é o Evangelho. Tenho uma sobrinha que todo mundo pensava que estava com indícios de mediunidade, mas ela tinha era obsessão e até convulsões, porque há casos de suicidas reencarnados, que trazem esses desequilíbrios nervosos que parecem epilepsia, mas não são. Para essa minha sobrinha, o Dr. Bezerra de Menezes escreveu uma das melhores mensagens que recebi na vida. Ela foi suicida! Agora se sabe que não há que se desenvolver a mediunidade. Ela não tem a menor condição para isso, pois tem o sistema nervoso completamente enfermo. O cérebro, também, não pode estar bom. Eu, por exemplo, depois que me dediquei muito à Doutrina, tenho que dar graças a Deus, porque me reequilibrei, mas a única coisa que reequilibra é, justamente, o trabalho do Evangelho, o trabalho doutrinário.
Como é o sofrimento de um suicida?
É o sofrimento superlativo e quem não foi suicida não pode saber, não pode fazer uma idéia do que é. Imagine uma aglomeração desses suicidas, que ficam numa confusão horrorosa e não compreendem o que está se passando, porque há vários tipos de suicidas juntos, no mesmo local, cada um com as suas reminiscências e as suas vibrações. Eles ficam desesperados porque se sentem “mortos-vivos”, e são verdadeiros “mortos-vivos” porque se sabe que o fluido vital ainda está neles, demora para se dissipar – podemos ler isso em Gabriel Delanne. Uns ainda se sentem afogando – a gente vê o trecho do mar em que estão se afogando! - ; outros se vêem horrorizados com um trem de ferro; alguns se vêem desesperados com os venenos e outros com tiros no ouvido – e tudo isso na mesma região e ao mesmo tempo. Essas vibrações se chocam; é um verdadeiro inferno, não tenho outra expressão! São impressões que um ser humano que não foi suicida não pode avaliar. Eu compreendi muito bem porque também fui suicida, também estive lá. Como médium de incorporação, recebi tudo quanto foi Espírito suicida, e eu sentia as impressões e o sofrimento deles. Afogamento é a coisa mais horrorosa que se pode sentir. Agora, a morte por trem de ferro é a pior de todas; a pessoa fica numa confusão horrorosa, porque se vê vivo e catando os pedaços do corpo; e cada pedaço que cata ele sente que é seu, que está com ela e ao mesmo tempos não está. É algo que ninguém pode avaliar nem quase compreender.
Como são os hospitais que amparam os suicidas?
São uma beleza mesmo! E note-se que essa esfera onde está o hospital é inferior, não é muito boa não. É outra dimensão, mas por aqui mesmo. Ali há muito sofrimento, mas é tudo muito bonito. Somente não há coloração. É quase tudo branco. Eles têm tudo lá: escadarias, móveis, aventais, flores... Tudo muito bonito. Até hoje eu vou lá. Entro por um corredor, subo uma escada à direita, torno a virar à esquerda. Uma vez eu fui durante o dia e me perguntaram: “Você aqui a esta hora?” Tenho certeza de que, quando eu desencarnar, vou para lá, porque esta minha existência é terapêutica de lá. Ainda sou paciente, estou internada lá. Então não tenho que ir para outra parte; até hoje eu vejo aqueles médicos, toda aquela gente e os reconheço. Reconheço até alguns daqueles personagens já reencarnados.
Você também fala sobre veículos usados para transportar os Espíritos suicidas. Poderia adicionar algum comentário sobre isso, inclusive falar também sobre os animais que você viu lá?
Antes de tudo, é preciso lembrar que quem escreveu o livro não fui eu, foram os Espíritos. Com relação aos meios de transporte, eu os vi de duas espécies. O primeiro era para retirar os Espíritos daquele vale, que é quase a Terra – estou desconfiada de que aquele Vale dos Suicidas não é no espaço coisa nenhuma, é aqui no perímetro da Terra... Quem retirava aqueles Espíritos eram os servidores da colônia, que utilizavam um veículo redondo, cheio de janelinhas ao redor. Era todo acolchoado no interior, muito bonito e cômodo. Os Espíritos sentavam-se e ficavam muito bem acomodados – acredito que esse conforto era, antes de tudo, um primeiro ato de caridade para aqueles Espíritos se consolarem; em cada detalhe percebíamos a ação da misericórdia divina.
Não sei de que material aquilo era feito. Pelos conhecimentos que tenho sobre o mundo espiritual, sei que era alguma matéria, porque coisa imaterial não pode existir, senão seria o nada – a eletricidade, por exemplo, é um formidável elemento, mas não a vemos, vemos só os seus efeitos. Aqueles veículos subiam no ar e rodavam, como dizem que fazem os discos voadores. Quando eles chegavam na entrada da colônia, os passageiros desciam e entravam por um portão. Todos preenchiam uma espécie de ficha, onde se anotava tudo: nome, local em que viveram, gênero do suicídio que tiveram, grau de instrução, orientação religiosa, etc. Dali é que eles seguiam finalmente, para a colônia propriamente dita. Ali era só entrada. Nesse momento é que mudava o meio de transporte, surgiam, então, as carruagens, muito bonitas, muito artísticas. Havia até trenó com cachorros e carruagens puxadas por cavalos muito lindos, todos brancos. Na colônia tudo era branco, até os cavalos. As crinas iam revoltas, agitadas pelo vento.
Eram perispíritos de animais?
Acredito que sim pelos conhecimentos que tenho sobre esse assunto nas obras clássicas da Doutrina. Não nas de Kardec, mas de Gabriel Delanne. Podemos concluir que poderia ser, porque se até as plantas têm perispírito, como muito bem nos indica André Luiz, que dirá um animal, um mamífero. Acredito que fossem os perispíritos dos cavalos. Mas poderia ser, também, uma construção mental dos Espíritos, porque no além-túmulo podemos construir tudo, justamente com esse elemento do mundo espiritual que vem a ser fluido cósmico universal, cujas modificações são quase infinitas, como dizem as obras clássicas. Vi também aves enfeitando os jardins do hospital. Seriam os perispíritos de aves? Isto eu não posso garantir. Não sei. Poderia ser também criação dos Espíritos para enfeitar o ambiente, porque aqueles fundadores da colônia eram verdadeiros artistas; enfeitavam o mais possível. Eu me lembro de ter visto lá, numa enfermaria onde ficou o Camilo Castelo Branco e aqueles seus companheiros, um quadro da Virgem, de Murilo, muito bonito, verdadeira arte. Aquele quadro não era estático, ele se movimentava. E isso o que é? Não tenho como explicar tudo... Pode ser uma analogia. Nós não temos palavras para explicar essas coisas do mundo espiritual. Ainda estamos muito bisonhos nesse sentido.
O livro tem produzido frutos, tanto no sentido de salvar criaturas do suicídio como na criação de obras do movimento espírita...
Sim. E uma dessas obras é o Centro de Valorização da Vida, CVV. Esse movimento é mundial, mas ainda não havia no Brasil. Jacques Conchon, espírita de São Paulo, criou essa instituição influenciado pelo Memórias de um Suicida, por causa do apelo que o livro faz para que os homens criem algo para evitar o suicídio... Eles fazem plantão noite e dia... São verdadeiros abnegados... Jacques Conchon disse que a situação mais difícil de recuperar um candidato a suicídio é o caso de amor, porque aí eles não podem fazer nada. Se o problema é doença, eles tratam, põem em hospital; se é financeiro, alugam casa, compram mobília, arranjam emprego. Tudo isso é causa de suicídio. Já os casos de amor são mais difíceis. Em 15 anos eles perderam dez casos. Eu creio que a proporção é grande. Eram todos casos de amor... Isso talvez se dê porque não se pode controlar o coração de uma pessoa. Se alguém é abandonado pelo outro a quem ama, o que fazer? O remédio para uma pessoa apaixonada que é desprezada é a conformidade com a situação, é voltar-se para Deus ou, então, seguir o conselho do Léon Tolstoi: arranjar um outro amor. Léon Tolstoi dá esse conselho. No livro Sublimação ele fala: “Não vale a pena se matar nem se desesperar; arranja outro amor. Porque o nosso coração não pode viver sem amar e ser amado”.
É da natureza humana...
Não, meu filho, é da natureza divina! Porque Deus é amor e somos descendentes de Deus. É o melhor conselho, o de Tolstoi.
Como enxerga o seu trabalho como médium?
É engano pensar que eu esteja em missão. Não recebi uma missão. Todo meu trabalho foi de reparação dos meus erros. A misericórdia de Deus dá, para grandes criminosos do passado, a mediunidade, para que ele, numa única existência, possa resgatar muita coisa, pois a mediunidade beneficia muita gente! O médium normalmente nem sabe o quanto beneficia. Aliás, o meu dever inadiável, inapelável, era só receber Memórias de um Suicida. Se eu o escrevesse estaria bem, não precisava escrever outro. Mas a misericórdia divina me deu mais, pois até agora tenho mais de dez publicados. Mas o que eu devia fazer era esse, só. Pude fazer mais alguns e, quem sabe, ainda posso publicar outros? Minha atividade mediúnica é um resgate. À proporção que iam saindo os meus livros, a angústia ia amenizando. Hoje eu sou uma criatura completamente equilibrada, não tenho mais essa angústia. Haja o que houver na minha vida, essa angústia não existe mais em mim.
Fonte: Extraído da Revista Universo Espírita – ano de 2006
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